01/10/13

Antígona revisitada. Um estudo indispensável da autoria feminina em Portugal


Esta recensão de

Cláudia Pazos Alonso e Hilary Owen: Antigone's Daughters? Gender, Genealogy and the Politics of Authorship in 20th-Century Portuguese Women's Writing. Lewisburg: Bucknell University Press 2011, ISBN 978-1-61148-002-3.


Abstract
Using a most appropriate rereading of the Antigone myth as unifying metaphor, Owen’s and Alonso’s lucid discussion of six well-known Portuguese women writers, working across different genres, offers fundamental insights into the complex gender politics and related genealogical questions in Portugal’s twentieth century literature.

Muitas escritoras portuguesas ainda não estão representadas no sistema cultural de uma maneira que poderia ser considerada igualitária. A ideologia do “falso neutro”, já denunciada em 1989 por Maria Isabel Barreno, e que levou muitas autoras a serem excluídas do cânone, continua em vigor. Um exemplo recente constitui o volumoso Século de Ouro – Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX (2002), um dos projetos antológicos mais importantes dos últimos anos: Apresenta apenas nove poesias de seis escritoras de um total de 74 textos, e um número igual de estudiosas e estudiosos, entre os quais só há 19 mulheres das que meramente quatro escolheram e comentaram textos de autoria feminina. Assim, quando a nível internacional as teorias da diferença já estão a ser ultrapassadas por outras problematizações do género e das identidades, a actualidade portuguesa impõe a necessidade de continuarmos a “favorecer projectos de investigação académica e intervenção cultural que privilegiam de forma enfática e exclusiva a análise ginocrítica” (Klobucka 2009: 16).
É, também, por esta razão intrasistémica que a recente publicação de Antigone's Daughters? Gender, Genealogy and the Politics of Authorship in 20th-Century Portuguese Women's Writing, das professoras Cláudia Pazos Alonso (Universidade de Oxford) e Hilary Owen (Universidade de Manchester) tem de ser celebrada. Como se indica na introdução do volume, a crítica e a investigação académicas da literatura em Portugal, seja aquela realizada por homens ou por mulheres, continua a ser reticente em relação às teorias relacionadas com os estudos de género e feministas em geral. Nas décadas entre os trabalhos pioneiros de Magalhães (anos oitenta) e o Dicionário da Crítica Feminista de Amaral e Macedo (2005) tem-se praticado relativamente pouca crítica literária feminista em Portugal, em comparação com os âmbitos espanhol ou francês, por exemplo. Se contamos hoje com um pequeno, mas solidamente articulado acervo de trabalhos orientados pelos estudos de género sobre a literatura de autoria feminina do século passado é, em grande medida, graças a estudiosas a trabalharem em universidades estrangeiras, como Darlene Sadlier, Anna Klobucka, Ana Paula Ferreira, Chatarina Edfeldt, Elfriede Engelmeyer, etc., entre as quais se encontram as autoras do presente estudo.
Antigone’s Daughters? é uma releitura da história literária portuguesa de autoria  feminina do século XX, orientada tanto pela ginocrítica como por aspectos do feminismo da terceira onda ou pós-estruturalistas, a partir de três gerações de escritoras agrupadas em três pares exemplares, tanto em termos diacrónicos como sincrónicos: Florbela Espanca e Irene Lisboa como uma primeira e limitada “abertura modernista”, Agustina Bessa-Luís e Natália Correia como vozes do tempo da ditadura e, finalmente, com Hélia Correia e Lídia Jorge a representarem o período pós-revolucionário. Através de precisas análises e comparações de obras seleccionadas, Owen e Alonso mostram como estas escritoras responderam de diferentes formas à tradicional associação do génio criativo com o escritor masculino, como lidaram com um cânone dominado por homens e, finalmente, como se adaptaram às mudanças políticas, sociais e culturais ao longo do século XX. O estudo centra-se, maioritariamente, na prosa e no teatro, tendo em conta o facto de Klobucka já ter analisado, em O Formato Mulher (2009), a poesia de autoria feminina do século XX. Outro trabalho prévio, no qual o presente estudo se apoia, é a crítica da historiografia literária portuguesa iniciada por Edfeldt, com Uma história na História (2006), onde a investigadora sueca tinha advertido do perigo de tratar as escritoras como categoria à parte, o que costumava ter como consequência a sua exclusão do cânone. Owen e Alonso interiorizaram a recomendação de Edfeldt de analisar as autoras no contexto das referências escolhidas por elas mesmas, como também desde uma crítica do androcentrismo da história ‘oficial’ da literatura. Assim, realizam um excelente e utilíssimo trabalho de síntese do estado da investigação em relação a algumas das principais escritoras portuguesas do século passado, colocando e respondendo duas questões centrais: a da abordagem da autoria feminina nas seis obras escolhidas e a dos seus diálogos intertextuais com os diferentes antecedentes literários no contexto da falta ou repressão de uma memória cultural feminina.

Como tertium comparationis, para resolver as questões de uma genealogia de escritoras e da lei paternal do próprio sistema que enfrentaram estas escritoras ao longo do século XX, emprega-se uma releitura do mito de Antígona, em contraposição ao peso teórico-cultural do mito de Édipo. Owen e Alonso põem em diálogo os diferentes tratamentos que esta clássica rebelde experienciou nos estudos de género, com o objectivo de libertar a memória cultural feminina dos padrões meta-históricos e literários da narrativa edipal/paternal. A partir de Luce Irigaray, Judith Butler, Cecilia Sjöholm e Christine Battersby, elabora-se uma perspectiva “from which to critique essentialized sexual politics based on nostalgia for lost matriarchal origins and the pursuit of utopian matrilinearity, while also undermining the absolutism of Oedipal paternal kin relations and genealogies by exposing their contingency” (27). Como obra paradigmática desta perspectiva, que procura uma originalidade sem ser essencialista, as autoras referem as Novas Cartas Portuguesas de Barreno, Horta e Costa como um exercício exemplar de contra-memória, na sua dupla condição de obra fundacional, mas também anti-fundacionalista, da crítica feminista em Portugal.
É a partir destes fundamentos metodológicos que se explora, por exemplo, o suicídio de Florbela Espanca (em paralelo com o de Antígona) como um “crowning act of authorship” que indicou a necessidade “to envisage new ‘terms of liveability’” (64) a princípios do século passado. De Irene Lisboa destaca-se a sua lúcida análise das definições sexistas da genialidade e da autoria femininas e de como estas excluíram as mulheres do acesso ao sistema cultural. Em relação a Agustina Bessa Luís, mostra-se como na sua obra a noção do génio é geralmente desvalorizada, enquanto sobressai uma falta de tratamento da dimensão do corpo (sexuado). No caso de Natália Correia sublinha-se a ironia de a sua defesa (anti-feminista) de uma “mátria” ter propiciado, ainda assim, através do seu papel de editora e crítica, o surgimento das Novas Cartas, um efeito que sugere, até, um interessante paralelismo entre a autora portuguesa e Irigaray. Com Hélia Correia exemplifica-se, entre outros aspectos, a revisitação do mito de Antígona, uma vez que uma excelente análise da obra dupla Florbela / Perdição. Exercício sobre Antígona consolida, retroactivamente, grande parte da argumentação. É neste contexto, onde mais nitidamente se consegue justificar a tese de que as questões da procura de antecessoras e de uma história perdida têm de ficar abertas, apesar de ainda ser possível reinstaurar, por exemplo, a autoridade simbólica de Espanca como “Portugal’s archetypal ‘dead woman poet’, retrospectively installing herself into a renewed and vital vector of women’s cultural memory” (177). É precisamente com esta análise transversal, no sentido de como a morte e a rápida canonização de Espanca levaram a várias escritoras posteriores (Bessa Luís, N. Correia, H. Correia) a confrontarem-se, de maneiras diversas, com esta figura antecessora, que Owen e Alonso logram traçar uma nova perspectiva historiográfica. Só na obra de Lídia Jorge apreciam um cessar da necessidade de revisitar Espanca, uma vez que aí se recupera, na peça A Maçon, com Adelaide Cabete, uma figura republicana feminista. Na possibilidade de o título desta peça se puder referir tanto à própria Cabete como ao seu sobrinho Arnaldo – cuja sexualidade indefinida aponta para a inestabilidade dos papéis identitários e para um despertar de novas formas de representações dos géneros na literatura portuguesa –, Owen e Alonso entrevêem um passo importante na evolução literária observada até este momento.
Ao final de alguns capítulos colocaram-se traduções de poemas ao inglês, realizados por Richard Zenith: dez de Florbela Espanca (dá-se pela falta de “Ser Poeta” que também não teve muita incidência na análise), um de Irene Lisboa e dois de Natália Correia. Se a intenção era a divulgação junto de um público mais amplo, talvez tivesse sido boa ideia traduzir, também, alguns excertos de prosa de Bessa Luís, H. Correia e Lídia Jorge, além de indicar as referências dos originais empregados pelo tradutor.
A conclusão ressalta que as escritoras portuguesas não tentaram substituir as estruturas patrilineares do sistema com uma “contra-história feminista matrilinear” (206) ou com um essencialismo maternalista. Explica-se esta circunstância com a perda de memória cultural imposta às mulheres no tempo do Estado Novo e que, por isso, a ausência de uma tradição literária feminina teve como consequência a “intersextualidade” (sic), definida pelas práticas de crítica e subversão da palavra masculina ou pela aproximação de literaturas estrangeiras. Adverte-se do facto de muitas obras terem ficado fora das análises específicas deste estudo referindo, concretamente, os nomes de Judith Teixeira, Sophia Andresen, Maria Judite de Carvalho, Maria Velho da Costa, Maria Gabriela Llansol e Ana Luísa Amaral. Sem haver necessidade de discutir as escolhas, só me veio uma dúvida em relação à conveniência de intercalar entre os pares Bessa Luís/N. Correia e H.Correia/Jorge um capítulo sobre as Novas Cartas, para proporcionar um entretecimento mais nítido entre o período ditatorial e o momento pós-revolucionário. Porém, a presença transversal e constante dos principais aspectos de análise desta obra, escolhida como referência absoluta desde o princípio, compensam o que, desde um ponto de vista de narração diacrónica, poderia ser visto como carência. Além disso, um capítulo específico poderia ter desviado a atenção do debate metanarrativo Antígona vs. Édipo, porque as Novas Cartas introduzem outro mito genealógico, já pós-estruturalista, com a figura de uma Mariana a diversificar-se numa multiplicidade de vozes. Mas isto representaria outro arquétipo feminino na literatura portuguesa moderna e teria exigido um acompanhamento do seu desenvolvimento posterior, por exemplo, na obra de Adília Lopes, o que já constituiria o tema de um estudo diferente. Em resumo, o símile com uma Antígona revisitada convence, acaba por ser uma metáfora válida e, no contexto do seu variado tratamento teórico, extremamente útil para uma interpretação original e inovadora deste segmento da literatura portuguesa. Assim, Antigone’s Daughters? tornar-se-á, certamente, numa obra indispensável para o estudo da literatura portuguesa de autoria feminina do século XX.

Referências:
Amaral, Ana Luísa e Ana Gabriela Macedo (orgs., 2005). Dicionário da Crítica Feminista. Lisboa: Afrontamento.
Barreno, Maria Isabel (1985). O Falso Neutro. Lisboa: Instituto de Estudos para o Desenvolvimento.
Edfeldt, Chatarina (2006). Uma história na História. Representações da autoria feminina na História da Literatura Portuguesa do século XX. Montijo: Câmara Municipal do Montijo.
Klobucka, Anna (2009). O Formato Mulher. A Emergência da Autoria Feminina na Poesia Portuguesa. Coimbra: Angelus Novus.
Silvestre, Osvaldo Manuel e Pedro Serra (2002). Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX. Braga, Coimbra, Lisboa: Angelus Novus & Cotovia.

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