07/03/12

Ricardo Reis: Materiais


Na célebre carta a Adolfo Casais Monteiro de 1935, Fernando Pessoa caracteriza Ricardo Reis da seguinte forma: 
"[...] nasceu em 1887 [...], no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. [...] Um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte [que caeiro], mais seco. [...] De um vago moreno mate. [...] Educado num colégio de jesuítas, é como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-hellenista por educação própria." 
Ainda segundo o seu criador, Ricardo Reis terá sido educado num colégio de jesuítas, tendo recebido uma educação clássica (latina) e estudado, por vontade própria, o helenismo (sendo Horácio o seu modelo literário). 
A sua formação clássica reflecte-se, quer a nível formal (odes à maneira clássica), quer a nível dos temas por si tratados e da própria linguagem utilizada, com um purismo que o Pessoa-ipse considerava exagerado. Era médico, no entanto, não exercia a profissão. De convicções monárquicas, emigrou para o Brasil após a implantação da República. Como pagão intelectual, lúcido e consciente demonstra uma moral estoico-epicurista, misto de altivez resignada e gozo dos prazeres que o não comprometessem na sua liberdade interior. Representa uma resposta possível do ser humano ao desprezo dos deuses e à efemeridade da vida.
A obra de RR consiste em 250 odes, das quais aproximadamente 30 se publicaram nas revistas Athena e Presença ainda em vida de Pessoa. Reis interpreta o neo-paganismo do seu mestre de maneira mais metafísica.
Em relação às tarefas que Pessoa atribui aos heterónimos, Caeiro devia realizar a "Reconstrução da sensibilidade pagã" e Reis a "Reconstrução da estética pagã"; enquanto António Mora seria o responsável da "Theoria geral do paganismo novo" e da "contra-these à «Critica da Razão Pura» de Kant, e tentativa de reconstruir o Objectivismo Pagão", ou seja, do "neoclassicismo «scientifico»", no qual "a Sciencia substituirá a religião". 
A função de Reis na heteronímia contraria, assim, o primado visual de Caeiro, o seu materialismo de pura representação: "a propia sensualidade com a sua animalidade directa devem ser excluidas da arte. Essas coisas não são arte: são vida. A arte deve dar o material, mas tornado immaterial". 
Por isso, Reis critica Cesário Verde, o único poeta venerado por Caeiro: "O verso de Cesario. Isso é photographico, não pictural. E a photographia não é arte porque reproduz exactamente a materia. Só é arte pela escolha (do assumpto, da posição, etc.) porque a arte é escolha". 
Reis é anti-moderno em termos estéticos e céptico e contraditório no que diz respeito ao neo-paganismo: "Ao pagão moderno, exilado e casual no meio de uma civilização inimiga, só pode convir uma das duas formas últimas da especulação pagã - ou o estoicismo, ou o epicurismo".
Afirmou, também, que: "O paganismo morreu. O cristianismo, que por decadência e degeneração descende dele, substituiu-[o] definitivamente. Está envenenada para sempre a alma humana." 
Reis não respeita a exigência horaciana que a poesia devia ter uma utilidade para a vida: "O que sentimos verdade dentro de nós, traduzimos para a palavra, escrevendo os nossos versos sem olhar aquilo a que se destinam". E: "Um poema é a projecção de uma ideia em Palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-sòmente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras". Álvaro de Campos considera que esta subordinação da linguagem lírica ao pensamento é a essência da poética de Reis.

Mais informação sobre Ricardo Reis e declamações das suas odes podem ser encontradas em MultiPessoa.
Uma boa informação geral, uma selecção de textos e exercícios (nível 12º ano) estão disponíveis em Lusofonia - Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa.
A Wikipédia oferece, também, uma síntese bastante aceitável da sua obra.
Os textos de boa parte das odes estão disponíveis no Arquivo Pessoa.
Alguns exemplos de intertextualidade / recepção de Ricardo Reis na literatura portuguesa podem ser encontrados aqui.
Uma análise completa da obra do heterónimo por  Maria Helena Nery Garcez, O tabuleiro antigo: uma leitura do heterônimo Ricardo Reis (São Paulo: Universidade de São Paulo 1990), pode ser lida aqui.
Para ouvir uma declamação da ode "Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia..." por Luís Gaspar dique em "Ler mais...".



Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Trespassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.

Ainda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao reflectir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Ainda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes indiferentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

Ricardo Reis/Fernando Pessoa

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